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    GEPPEP NA PANDEMIA
    3. Leituras na pandemia

    Semanalmente, selecionaremos fragmentos de textos literários e ensaísticos para ajudar a enfrentar a crise com arte.


    TEXTO 13




    As mulheres de Itália

    Alberta faz questão de todas as manhãs se pentear em frente ao espelho e se pintar como se fosse ver muita gente.
    Está sozinha, mas põe Manu Chao e fica contente. Não sai de casa.
    Albina tem um pequeno jardim na parte de trás do seu estúdio, mas não vai para lá porque tem medo do olhar de inveja dos vizinhos.
    Albina só não tem medo do olhar de Gustavo, do terceiro andar, porque Gustavo já morreu. Mas vai ter medo do olhar da mulher de Gustavo, quando ela regressar do hospital.
    Alcina sai de casa rapidamente para levar comida ao seu papá.
    Toca à campainha do seu papá, mas ele não atende.
    O que se passa, pensa Alcina. E está assustada.
    Alda lê um livro de Pasternak e por vezes levanta a cabeça e olha para a janela.
    Quer cortar o cabelo todo para ficar feia e não pensar mais em sexo. É assim que ela pensa. Para acabar com o desejo.
    Vou cortar o cabelo para não querer mais foder.
    Dominico ao lado dela, ri-se.
    Alessandra quer ver crescer o filho que tem sete anos e por isso ficou sobressaltada quando ontem repentinamente o menino começou com tosse e febre.
    Alessia ri-se do medo que tinha dos ratos e lembra-se de como um dia um ratinho entrou em casa e ela subiu para um banco à pressa, desequilibrou-se e bateu com a nuca na parte de trás da arca que tinha todas as fotografias antigas da família.
    Lembra-se ainda que se não fosse o seu ex-marido a socorrê-la ela hoje já não estaria viva. Mas também não estaria com estes medos todos.
    Alfonsa tem dezoito anos e vai à janela e grita pelo Inter de Milão. Tem um cachecol ao peito que lhe foi dado pelo seu pai.
    Alfreda trabalha com cegos e como seu trabalho está interrompido, por causa dos obras e do medo, pensa como estarão eles, os cegos, a lidar com isto tudo.
    Alice tenta desdobrar um papel que o marido amarrotou.
    É o mapa de Itália, o marido está furioso.
    Alida experimenta uns sapatos novos e os pés doem.
    Diz: não há problema por os pés doerem, não é grave.
    Alina telefonou ao irmão Carlo e disse: se eu morrer, filma e fotografa o meu filho
    todos os meses e manda-me as fotos e os filmes.
    Mesmo depois de morta quero vê-lo crescer, disse ainda Alina.

    TAVARES, Gonçalo M. Mulheres de Itália. TAG: experiências literárias (texto inédito), extrato 3, p. 4-5.


    TEXTO 12






    ACORDAR, VIVER

    Como acordar sem sofrimento?
    Recomeçar sem horror?
    O sono transportou-me
    àquele reino onde não existe vida
    e eu quedo inerte sem paixão.

    Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
    a fábula inconclusa,
    suportar a semelhança das coisas ásperas
    de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

    Como proteger-me das feridas
    que rasga em mim o acontecimento,
    qualquer acontecimento
    que lembra a Terra e sua púrpura
    demente?
    E mais aquela ferida que me inflijo
    a cada hora, algoz
    do inocente que não sou?

    Ninguém responde, a vida é pétrea.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Farewell. Rio de Janeiro: Record, 1996. (p. 16).


    TEXTO 11




    Aos que vão nascer

    I

    Realmente, eu vivo num tempo sombrio.
    A inocente palavra é um despropósito. Uma fronte sem ruga
    denota insensibilidade. Quem está rindo
    é só porque não recebeu ainda
    a notícia terrível.

    Que tempo é este em que
    uma conversa sobre árvores chega a ser falta,
    pois implica silenciar sobre tantos crimes?
    Esse que vai cruzando a rua, calmamente,
    então já não está ao alcance dos amigos
    necessitados?

    É verdade: ainda ganho o meu sustento.
    Porém, acreditai-me: é puro acaso. Nada
    do que faço me dá direito a isso, de comer a fartar-me.
    Por acaso me poupam. (Se minha sorte acaba,
    estou perdido.)

    Dizem-me: – Vai comendo e vai bebendo! Alegra-te com o que tens!
    Mas como hei de comer e beber, se
    o que eu como é tirado a quem tem fome, e
    meu copo d’água falta a quem tem sede?
    Contudo eu como e bebo.

    Eu bem gostaria de ser um sábio.
    Nos velhos livros consta o que é sabedoria:
    manter-se longe das lidas do mundo e o tempo breve
    deixar correr sem medo.
    Também saber passar sem violência,
    pagar o mal com o bem,
    os próprios desejos não realizar e sim esquecer,
    conta-se como sabedoria.
    Não posso nada disso:
    realmente, eu vivo num tempo sombrio!

    II

    Às cidades cheguei em tempo de desordem,
    com a fome imperando.
    Junto aos homens cheguei em tempo de tumulto
    e me rebelei com eles.
    Assim passou-se o tempo
    que sobre a terra me foi concedido.

    Minha comida mastiguei entre refregas.
    Para dormir deitei-me entre assassinos.
    O amor eu exercia sem cuidado
    e olhava sem paciência a natureza.
    Assim passou-se o tempo
    que sobre a terra me foi concedido.

    As ruas do meu tempo iam dar no atoleiro.
    A fala denunciava-me ao carrasco.
    Bem pouco podia eu, mas os mandões
    sem mim sentiam-se mais garantidos, eu esperava.
    Assim passou-se o tempo
    que sobre a terra me foi concedido.

    Minguadas eram as forças. E a meta
    ficava a grande distância;
    claramente visível, conquanto para mim
    difícil de alcançar.
    Assim passou-se o tempo
    que sobre a terra me foi concedido.

    III

    Vós, que vireis na crista da maré
    em que nos afogamos,
    pensai,
    quando falardes em nossas fraquezas,
    também no tempo sombrio
    a que escapastes.

    Vínhamos nós então mudando de país mais do que de sapatos,
    em meio às lutas de classes, desesperados,
    enquanto apenas injustiça havia e revolta nenhuma.

    E entretanto sabíamos:
    também o ódio à baixeza
    endurece as feições,
    também a raiva contra a injustiça
    torna mais rouca a voz. Ah, e nós,
    que pretendíamos preparar o terreno para a amizade,
    nem bons amigos nós mesmos pudemos ser.
    Mas vós, quando chegar a ocasião
    de ser o homem um parceiro para o homem,
    pensai em nós
    com simpatia.


    An die Nachgeborenen

    I

    Wirklich, ichlebe in finsterenZeiten!
    Das argloseWortisttöricht. EineglatteStirn
    Deutet auf Unempfindlichkeithin. Der Lachende
    Hat die furchtbareNachricht
    Nurnochnichtempfangen.

    Was sind das fürZeiten, wo
    EinGesprächüberBäume fast einVerbrechenist
    Weil eseinSchweigenüber so vieleUntateneinschließt!
    Der dortruhigüber die Straßegeht
    Istwohlnichtmehrerreichbarfür seine Freunde
    Die in Not sind?

    Esistwahr: ichverdienenochmeinenUnterhalt
    Aber glaubtmir: das istnureinZufall. Nichts
    Von dem, was ichtue, berechtigtmichdazu, michsattzuessen.
    Zufällig bin ichverschont. (WennmeinGlückaussetzt, bin ichverloren.)

    Man sagtmir: Iß und trink du! Sei froh, daßduhast!
    Aber wiekannichessen und trinken, wenn
    Ich den Hungerndenentreiße, was ichesse, und
    Mein GlasWassereinemVerdurstendenfehlt?
    Und dochesseundtrinkeich.

    Ichwäregerneauchweise.
    In den altenBüchernsteht, was weiseist:
    SichausdemStreit der Welt halten und die kurzeZeit
    OhneFurchtverbringen
    AuchohneGewaltauskommen
    BösesmitGutemvergelten
    Seine Wünschenichterfüllen, sondernvergessen
    Gilt fürweise.
    Alles das kannichnicht:
    Wirklich, ichlebe in finsterenZeiten!

    II

    In die StädtekamichzurZeit der Unordnung
    Als da Hunger herrschte.
    Unter die MenschenkamichzurZeit des Aufruhrs
    Und ichempörtemichmitihnen.
    So verging meineZeit
    Die auf Erdenmirgegeben war.

    Mein Essen aßichzwischen den Schlachten
    Schlafenlegteichmichunter die Mörder
    Der Liebepflegteichachtlos
    Und die NatursahichohneGeduld.
    So verging meineZeit
    Die auf Erdenmirgegeben war.

    Die Straßenführten in den SumpfzumeinerZeit.
    Die SpracheverrietmichdemSchlächter.
    Ichvermochtenurwenig.AberdieHerrschenden
    Saßenohnemichsicherer, das hoffteich.
    So verging meineZeit
    Die auf Erdenmirgegeben war.

    Die Kräftewarengering. Das Ziel
    Lag in großerFerne
    Es war deutlichsichtbar, wennauchfürmich
    Kaumzuerreichen.
    So verging meineZeit
    Die auf Erdenmirgegeben war.

    III

    Ihr, die ihrauftauchenwerdetaus der Flut
    In der wiruntergegangensind
    Gedenkt
    Wennihr von unserenSchwächensprecht
    Auch der finsterenZeit
    Der ihrentronnenseid.
    Gingenwirdoch, öfterals die Schuhe die Länderwechselnd
    Durch die Kriege der Klassen, verzweifelt
    Wenn da nun Unrecht war und keineEmpörung.

    Dabeiwissenwirdoch:
    Auch der Haßgegen das Unrecht
    Macht die Stimmeheiser. Ach, wir
    Die wir den Boden bereitenwolltenfürFreundlichkeit
    Konntenselbernichtfreundlich sein.

    Ihraber, wennes so weit sein wird
    Daß der MenschdemMenscheneinHelferist
    Gedenktunsrer
    MitNachsicht.


    BRECHT, Bertolt. Aos que vão nascer. Tradução de Geir Campos. In: GULLAR, Ferreira (Organização e Traduções). O prazer do poema: uma antologia pessoal. Rio de Janeiro, RJ: Edições de Janeiro, 2014. p. 250-253.

    BRECHT, Bertolt. An die nachgeborenen. In: PROOST, Kristel; WINKLER, Edeltraud (Hrsg.). Von intentionalitätzurbedeutungkonventionalisierterzeichen: festschrift für Gisela Harraszum 65º geburtstag. Tübingen, GE: Gunter Narr Verlag, 2006. s. 258-260. (‘StudienzurDeutschenSprache’ - Forschungen des Institutsfür Deutsche Sprache).


    TEXTO 10




    Da delicadeza

    Os delicados preferem morrer – escreveu C. D. A. Mas os delicados aos quais se refere o poeta não são aqueles que apanham a luva que caiu, no tempo em que se usava luva. Ou que cedem a poltrona na sala repleta ou que seguram a porta do elevador enquanto as senhoras estão saindo, não se trata dos delicados dos manuais de boas maneiras mas de um tipo de delicadeza que revela a falta de vocação para a vida.
    Os delicados podem ter vocação para o piano. Para o teatro. Para o magistério. Vocação para a máquina, H. O. era um excelente relojoeiro. S. V. era outro delicado, um físico raro que estudava a estrutura da bolha de sabão. Mas nenhum deles com vocação para viver. Com toda a sua vitalidade, o moço do trapézio voador que só voava sem rede também era um delicado, minha mãe tapou meus olhos mas pela fresta negra dos dedos – ela usava luva – vi o corpo de giz branco ir se fazendo vermelho na lona do picadeiro, ele queria isso, disse o gerente do circo. Ele esperava por isso. Minha colega da Academia não contava as pílulas dos tubos que ia engolindo, um primo míope tirava os óculos para não ver o sangue enquanto ia cortando os pulsos com gilete azul – todos delicadíssimos saindo sem ruído pela porta da morte que é a mais fácil. Sem olhar para trás.
    E os fortes? Na classificação sumária, acho que somos fortes simplesmente porque estamos vivos. E fazendo tudo para seguir nesse estado, mais do que isso! lutando por essa vida e com que obstinação. Provas? Atravessamos a rua feito um raio para não sermos atropelados, desviamos depressa a cara quando nela o ônibus sopra aquela fumaça de enegrecer pulmão de anjo. Bebemos água filtrada, passamos álcool no dedinho inflamado, gargarejamos com sal e limão quando a garganta rateia, corremos à farmácia quando desembarca no aeroporto um novo vírus de gripe, todo ano chega um de impermeável e chapéu-Gelot, ô meu Pai! o que de indigente esforço e despesa. A massa de tempo que se canaliza na luta para manter o coração e os acessórios em boa forma. Em boa postura porque senão a coluna, compreende? Massagem. Ginástica. As novidades rejuvenescedoras, tempo de correr. Tempo de sentar. Quilos de vitaminas. Litros de poções, mesmo os que parecem distraídos estão atentos, fingem uma displicência de superfície porque no particular, e essa dorzinha no ombro, hem? Pomadinhas. Lenimentos, cresci ouvindo minha mãe falar no lenimento do dr. Sloan, como guardei esse cheiro! Tantas bulas, tantos doutores, tantas barbas: Magnésia Fluida do Dr. Murray, uma colher de chá para as damas de estômago delicado, as damas eram delicadíssimas. Talco do Dr. Ross para odores, frieiras. E a Maravilha Curativa do Dr. Humphreys? Um imenso leque de indicações, desatei a falar tanto nele que meu filho cresceu ouvindo esse nome, era menininho ainda e veio me dizer quando perguntei quem tinha tocado a campainha, “é o dr. Humphreys que quer falar com você”.

    TELLES, Lygia Fagundes. A disciplina do amor. São Paulo: Círculo do Livro, 1980, p. 41-42.


    TEXTO 9




    O Emplasto

    Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.
    Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me argúam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória.
    Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.
    Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.

    ASSIS, Machado de (1881). Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 15. (Biblioteca Folha; 4)


    TEXTO 8




    Agora não entendo bem a liberdade que gozávamos na época. Vivíamos numa ditadura, falava-se de crimes e atentados, de estado de sítio e toque de recolher, e mesmo assim nada me impedia de passar o dia vagando longe de casa. As ruas de Maipú não eram, então, perigosas? De noite sim, e de dia também, mas com arrogância ou com inocência, ou com uma mescla de arrogância e inocência, os adultos brincavam de ignorar o perigo: brincavam de pensar que o descontentamento era coisa de pobres e o poder, assunto de ricos, e ninguém era pobre nem rico, pelo menos não ainda, naquelas ruas, naquela época.

    Zambra, Alejandro. Formas de voltar para casa. São Paulo: Cosac Naify, 2014, pp. 19-20.


    TEXTO 7




    Congresso Internacional do Medo

    Provisoriamente não cantaremos o amor,
    que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
    Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
    não cantaremos o ódio, porque este não existe,
    existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
    o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
    o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
    cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
    cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
    depois morreremos de medo
    e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião: 10 livros de poesia. Livraria José Olympio Editora: Rio de Janeiro, 1969 (p. 49)


    TEXTO 6




    Os ninguéns

    As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
    Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
    Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
    Que não são, embora sejam.
    Que não falam idiomas, falam dialetos.
    Que não praticam religiões, praticam superstições.
    Que não fazem arte, fazem artesanato.
    Que não são seres humanos, são recursos humanos.
    Que não tem cultura, têm folclore.
    Que não têm cara, têm braços.
    Que não têm nome, têm número.
    Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
    Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

    GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. 9ª Ed. Porto Alegre: L&PM, 2002, p. 71.


    TEXTO 5




    MENSAGEM DO ALÉM

    Aqui estamos todos nus.
    Jaime Ovalle

    Aqui é tudo o que olhamos
    Nu como céu, como a cruz,
    Como a folha e a flor nos ramos:
    Aqui estamos todos nus.

    As vestes que aí usamos
    Nada adiantam. Se o supus,
    Se o supões, nos enganamos:
    Aqui estamos todos nus.

    Dinheiro que aí juntamos,
    Joias que pões (e eu já as pus),
    De tudo nos despojamos:
    Aqui estamos todos nus.

    Aqui insontes nos tornamos
    Como antes do pecado os
    De quem todos derivamos,
    Aqui estamos todos nus.

    Aos pés de Deus, que adoramos
    Sob a sempiterna luz,
    É nus que nos prosternamos:
    Aqui estamos todos nus.

    BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.245-6.


    TEXTO 4





    Para cantar junto


    Danse Macabre
    Camille Saint-Saëns (Charles-Camille Saint-Saëns)

    Zig et zig et zag, la mort en cadence
    Frappant une tombe avec son talon,
    La mort à minuit joue un air de danse,
    Zig et zig et zag, sur son violon.

    Le vent d'hiver souffle, et la nuit est sombre,
    Des gémissements sortent des tilleuls;
    Les squelettes blancs vont à travers l'ombre
    Courant et sautant sous leurs grands linceuls,

    Zig et zig et zag, chacun se trémousse,
    On entend claquer les os des danseurs,
    Un couple lascif s'asseoit sur la mousse
    Comme pour goûter d'anciennes douceurs.

    Zig et zig et zag, la mort continue
    De racler sans fin son aigre instrument.
    Un voile est tombé! La danseuse est nue!
    Son danseur la serre amoureusement.

    La dame est, dit-on, marquise ou baronne.
    Et le vert galant un pauvre charron -
    Horreur! Et voilà qu'elle s'abandonne
    Comme si le rustre était un baron!

    Zig et zig et zig, quelle sarabande!
    Quels cercles de morts se donnant la main!
    Zig et zig et zag, on voit dans la bande
    Le roi gambader auprès du vilain!

    Mais psit! tout à coup on quitte la ronde,
    On se pousse, on fuit, le coq a chanté
    Oh! La belle nuit pour le pauvre monde!
    Et vive la mort et l'égalité!


    Dança Macabra
    Camille Saint-Saëns (Charles-Camille Saint-Saëns)
    Tradução livre por Claudia Riolfi, infeliz por não conseguir manter todas as rimas.

    Zig e zig e zag, a morte na cadência
    Batucando em um túmulo com o calcanhar,
    À meia-noite, a morte toca uma música dançante,
    Zig e zig e zag, em seu violino.

    O vento do inverno sopra, a noite está sombria,
    Gemidos saem das tílias;
    Esqueletos brancos atravessam a penumbra
    Correndo e pulando sob suas grandes mortalhas,

    Zig e zig e zag, todo mundo se remexe,
    Os ossos dos dançarinos batendo fazem intriga,
    O casal lascivo senta-se no musgo
    Para sentir a doçura antiga.

    Zig e zig e zag, a morte continua
    A arranhar sem parar seu instrumento azedinho.
    Um véu caiu! A dançarina está nua!
    Seu parceiro a abraça com carinho.

    Diz-se que a dama é uma marquesa ou uma baronesa.
    E o galante verde, um pobre ferreiro -
    Horror! E agora ela se entrega
    Como se o tosco fosse um barão!

    Zig e zig e zig, que Ciranda!
    Que círculos de mortos apertando as mãos!
    Zig e zig e zag, vemos na roda
    O rei na dança com o caipirão!

    Mas psit! deixamos a rodada de repente,
    Empurramos um ao outro, fugimos, o galo cantou
    Oh! Da bela noite para o mundo pobre!
    Viva a morte e a igualdade!


    TEXTO 3




    A PESTE

    Eu reino. É um fato. É, portanto, um direito. Mas um direito que não se discute, ao qual deveis adaptar-vos. Aliás, não vos iludais: se reino, é à minha maneira e até seria certo dizer que funciono. [...] Não possuo cetro e tomei o aspecto de um suboficial. É a maneira que encontrei para vos atormentar, pois é bom que sejais atormentados: tendes tudo por aprender. Vosso rei tem as unhas negras e o uniforme sóbrio. Não está sentado no trono: está sitiando. Seu palácio é uma caserna; seu pavilhão de caça, um tribunal. O estado de sítio está proclamado.
    Eis porque - anotai isso - quando eu chego, o patético retira-se. Está proibido, como estão proibidos a ridícula angústia da felicidade, o rosto estúpido dos apaixonados, a contemplação egoísta das paisagens e a criminosa ironia. Em lugar de tudo isso, trago a organização. Isso vos incomodará um pouco, no início, mas acabareis por compreender que uma boa organização vale muito mais que um mau patético. E, para ilustrar este belo pensamento, começo por separar os homens das mulheres. E isso terá força de lei.
    (Os guardas começam a cumprir a lei).
    Vossas macaquices tiveram o seu momento. Agora, trata-se de serdes sérios! Suponho que já me compreendestes. A partir de hoje, ides aprender a morrer na ordem. Até aqui, tendes morrido à espanhola, um pouco ao acaso: porque fez frio, após ter feito calor; porque vossas mulas tropeçavam; porque a linha dos Pirineus era azul; porque, na primavera, o rio Guadalquivir atrai os solitários, ou porque existem imbecis desenfreados, que matam por lucro, ou pela honra - quando é tão mais distinto matar pelos prazeres da lógica. Sim: morreis mal. Um morto aqui, um morto lá, este em sua cama, aquele na arena. Pura libertinagem. Felizmente, porém, essa desordem vai ser administrada. Uma só espécie de morte, para todos - e de acordo com a bela ordem de uma lista. Tereis vossas fichas, não morrereis mais por capricho. O destino, de agora em diante, vai tomar juízo, já tem seus escritórios. Fareis parte da estatística e ireis, enfim, servir para alguma coisa. Ia me esquecendo de dizer que, está claro, morrereis, mas sereis incinerados, em seguida, ou mesmo antes: é mais limpo e faz parte do plano: a Espanha em primeiro lugar!

    CAMUS, Albert. Estado de Sítio. São Paulo: Abril Cultural, 1977. pp. 60-61.


    TEXTO 2




    Esperemos
    Solano Trindade

    Eu ia fazer um poema para você
    mas me falaram das crueldades
    nas colônias inglesas
    e o poema não saiu

    ia falar do seu corpo
    de suas mãos
    amada
    quando soube que a polícia espancou um companheiro
    e o poema não saiu

    [...]

    perdão amada
    por não ter construído o seu poema
    amanhã esse poema sairá
    esperemos.

    TRINDADE, Solano. Poemas antológicos de Solano Trindade. Seleção, organização e prefácio de Zenir Campos Reis. São Paulo: Nova Alexandria, 2006. p. 30

    TEXTO 1





    VIU O POVO DE BUQUIM COISAS DE ASSOMBRAR NAQUELES DIAS DE BEXIGA NEGRA. Viu o diretor do posto de saúde, jovem doutor da faculdade, fugir em tão desabalada fuga a ponto de tomar o trem errado, fazendo o trajeto para Aracaju via Bahia, pela bexiga expulso da cidade. A correria do tufão, descrita com detalhes pelo farmacêutico na noticiosa porta da botica, causou risos em meio ao choro pelos mortos. Onde vai assim com tanta pressa, oh doutorzinho? Vou a Aracaju pelas vacinas. Mas esse trem não vai, ele vem de Aracaju, vai pra Bahia. Me serve qualquer trem, qualquer caminho, o tempo urge. Mas as vacinas, doutorzinho, eu as trouxe, estão aqui comigo, estoque suficiente para vacinar de cabo a rabo o estado de Sergipe e ainda sobra. Pois que lhe façam bom proveito, fique também com os eleitores de Buquim e, se tem dinheiro e competência, com a rapariga, é de chupeta. Viu o povo de Buquim coisas de assombrar naqueles dias da bexiga de canudo. Viu as putas de Muricapeba, singular e diminuto batalhão, sob o comando de Tereza Batista, espalhando-se pela cidade e pelas roças a aplicar vacinas. Boa Bunda de colossal traseiro; a magra Maricota para apreciadores do gênero esqueleto, muito em moda; Mão de Fada, nos tempos de donzela assim apelidada pelos namorados até que um deles foi além da mão e lhe fez a caridade; Bolo Fofo, balofa, gordalhona, para os apreciadores do gênero jaca mole ou colchão de carnes, há quem goste; a velha Gregória com cinqüenta anos de labuta, contemporânea do dr. Evaldo pois chegaram os dois a Buquim na mesma data; a menina Cabrita, com catorze anos de idade e dois de ofício, um riso arisco. Quando Tereza as convidou, a velha disse não, quem é doida de se meter no meio da bexiga? Mas Cabrita disse sim, eu vou. Foi braba a discussão, além da vida que tinham elas a perder? E a vida de uma puta do sertão, morta de fome, que merda vale? Nem a bexiga quer vida tão barata, até a morte a enjeita. Gregória ainda não está farta de miséria? Foram as seis e aprenderam com Tereza, Maxi e com o farmacêutico a vacinar, rápido aprenderam — para quem trabalha de rameira nada é difícil, acreditem. Recolheram bosta seca nos currais, lavaram roupa empesteada, lavaram enfermos com permanganato, furaram pústulas, cavaram covas, enterraram gente. As putas, elas sozinhas. Viu o povo de Buquim coisas de assombrar naqueles dias da bexigamãe. Viu os bexiguentos andando nas estradas e nas ruas postos fora das fazendas, buscando o lazareto, morrendo nos caminhos. Viu o povo fugindo, abandonando as casas no medo do contágio, sem rumo, sem destino — quase deserto ficou o arruado de Muricapeba. Dois fugitivos foram pedir pouso no sítio de Clodô, este os recebeu de clavinote em punho, caiam fora, vão-se pros infernos. Insistiram, choveu bala, um morreu logo, o outro penou, não sabia Clodô já estar contaminado; ele, a mulher, dois filhos e mais um de criação, não sobrou nenhum, todos no papo da bexiga. Viu por fim o povo, num assombro, a citada Tereza Batista levantar na rua um bexiguento, com a ajuda de Gregória e de Cabrita metê-lo num saco de estopa e pô-lo ao ombro. Era Zacarias mas nem a velha nem a menina reconheceram o frustrado freguês na outra noite — expulsos da propriedade do coronel Simão Lamego, ele e mais três variolosos. Não queria o coronel contaminação em terras suas, fossem morrer na puta que os pariu e não ali ameaçando os demais trabalhadores e membros da família ilustre. Quando Zacarias e Tapioca caíram com bexiga, o coronel estava de viagem, por isso ali permaneceram os dois, sendo que Tapioca logo morreu, não sem contagiar mais três. Com a chegada do patrão acabou-se a pagodeira, o capataz recebeu ordens terminantes e os quatro enfermos, sob ameaça de revólver, arrastaram-se para longe da porteira. Três se internaram mata adentro, buscando onde morrer em paz, mas Zacarias tinha apego à vida. Nu, as chagas expostas, o rosto uma postema só, bexiga de canudo. Visão do inferno, por onde ia passando punha o povo em fuga. Sem forças foi cair na praça, em frente à igreja. Tereza veio e, com o auxílio das duas putas — pois nenhum homem da localidade, nem sequer Maxi das Negras, teve ânimo de tocar o corpo podre do trabalhador —, como um embrulho o enfiou no saco e o pôs ao ombro, carregando-o para o lazareto onde já estavam, tendo ido pelos próprios pés, duas mulheres e um rapaz do campo, além de quatro outros procedentes de Muricapeba. Atravessando a aniagem, o pus de Zacarias vinha grudar-se no vestido de Tereza, escorria-lhe viscoso pelo corpo.

    AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Pp.230-232.