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    Cresce epidemia da língua espraiada


    Emari Andrade
    Cresce número de leitores que apreendem o sentido de textos de modo literal, não condizente com as especificações contidas no projeto textual.
    Não é de hoje que educadores estão reclamando das dificuldades de leitura e de escrita de seus alunos de todos os níveis de ensino. Ao falar a respeito delas, ora aludem à desatenção, ora à falta de motivação, ou, ainda, à falta de base.
    Pensando nessas dificuldades, a Profa. Claudia Rosa Riolfi, livre-docente da Universidade de São Paulo, decidiu olhar os erros e as confusões das pessoas mais de perto. Ao analisar o modo de funcionamento de produções linguageiras de pessoas de várias idades e profissões, descobriu uma epidemia que chamou de língua espraiada. Na definição da autora, a pessoa sabe falar, mas não consegue fazer as operações necessárias para realizar, de modo adequado, o cálculo que lhe permitiria chegar a um sentido socialmente partilhado.
    A descrição, análise e modos de contornar essa epidemia foram minuciosamente descritos pela autora, no livro “A língua espraiada”, que será lançado, no dia 15 de maio, pela editora Mercado de Letras. Para aguçar a curiosidade do leitor, separamos três exemplos narrados pela autora.
    O primeiro caso envolve um jovem senhor na faixa dos trinta anos. Por ocasião de um concurso público, o responsável por aplicar a prova de redação iniciou-a com várias instruções de caráter geral, a saber:
    - Esta é a folha de rascunho e esta é a da versão final. Ao término dos trabalhos, daqui a três horas, vocês devem entregar ambas. Qualquer tentativa de identificação de sua produção resultará em imediata eliminação do candidato. Quanto ao tamanho da dissertação, é totalmente indiferente. Dez, vinte, trinta, cinquenta linhas... Isso é com vocês.
    (Após três horas, dirigindo-se a um dos candidatos que suava frio enquanto corria seu dedo pelo papel, parecendo estar contando as linhas): - Tudo bem com você?
    - Não, eu estou com um problema grave. Eu já passei a prova a limpo e deu cinquenta e uma linhas. Vou ser desclassificado?
    Claudia Riolfi, ao analisar o que o candidato fez para conseguir errar, nota que ele construiu uma hipótese interpretativa discordante do projeto textual do examinador. Não conseguiu articular todas as partes do texto oral que teriam sido necessárias para que ele compreendesse as exigências da prova. Em especial, ele desconsiderou o seguinte enunciado: “Quanto ao tamanho da dissertação, é totalmente indiferente”. Como não deu atenção a esta parte, agarrou-se à informação subsequente. Então, “Dez” virou o número que estaria descrevendo o número mínimo de linhas a ser escrito e “cinquenta” o máximo.
    Como colocado pela autora, o candidato fez uma leitura em cacos. Foi vítima da Língua Espraiada. Qual a sua característica? Levar o falante a se mostrar incapaz de incluir o que deveria (conhecimentos enciclopédicos e pragmáticos, por exemplo) no cálculo do sentido. Na Língua Espraiada, como escrito por Claudia Riolfi, é como se cada palavra ficasse em curto-circuito.
    Ao ler enunciados banais, os leitores permanecem, tais como as crianças pequenas, presos em uma leitura metonímica. Não conseguem somar as partes, fazer “um”. Pegam partes isoladas do que estão lendo, mas não conseguem reinterpretá-las à luz dos outros fragmentos.
    Segundo exemplo. Ao entrar em uma sala de aula de terceiro ano do ensino médio, onde pretendia assistir a uma aula de língua portuguesa, uma educadora notou que um grupo de jovens, cuja idade média era dezoito anos, estava ocupado em ler alguns materiais que a professora havia trazido para fazer um trabalho de leitura, no caso, jornais e revistas de grande circulação.
    Ao se deparar com uma das manchetes, os alunos pareceram entristecer-se sinceramente. Passaram a pronunciar exclamações tais como “Que pena!”; “Nossa, que perda para a televisão brasileira!”; “Muito jovem para morrer!”. Curiosa, a estagiária aproximou-se do grupo e, enquanto escutava o último comentário – “Você viu? Mataram o Faustão!!!”
    A jovem ficou curiosa para saber quem tinha morrido. Foi ler a capa da revista. Perplexa, vislumbrou o seguinte enunciado: “SHEILA MELLO E GUGU ENTERRAM FAUSTÃO”.
    Nesse exemplo, o que caracteriza o fenômeno da língua espraiada, para a autora, foi o fato dos leitores não perceberam que o verbo “enterrar” devia ser interpretado como sendo uma metáfora de “vencer por muitos pontos”. E, pior, de terem suposto que colegas de um apresentador de televisão teriam, de algum modo, trabalhado em seu enterro.
    Por fim, destacamos um exemplo que ilustra como os profissionais da linguagem não estão livres da língua espraiada. Em manchete da televisão da estação do metrô Butantã estava escrito: “E polícia apreende 42 kg de maconha e duas mulheres”. Claudia Riolfi, então, pergunta: Como usar a coordenada “e” para adicionar “maconha” e “mulheres”? E, ainda, por que usar o verbo “apreender” para “mulheres”?
    O que os três exemplos têm em comum? O fato de que os sujeitos concernidos têm dificuldade de tomar os recursos expressivos como objeto de sua atenção. Privado dos meios de refletir a seu respeito, realiza interpretações disparatadas, impossíveis de serem sustentadas junto à comunidade interpretativa. Quando escrevem, é como se a língua tivesse uma autonomia com relação ao falante. Não conseguem se reler o suficiente para revisar os próprios textos.
    Para Claudia Riolfi, reconhecer o fenômeno é o primeiro passo para encontrar modos eficazes de tratá-lo. O segundo é encontrar, nas teorias emergentes do encontro da educação, psicanálise e linguística, modos de reinventar a relação do sujeito com sua língua.
    Fica o convite para que cada qual se implique na reinvenção dessa relação e, a partir da leitura do livro, encontrar os aportes teórico-metodológicos para essa missão.

    O livro:
    RIOLFI, Claudia Rosa. A língua espraiada. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2015. 332p.

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